Francescoli, o Príncipe de Nuñez

Olhar para a história do futebol argentino, chileno, uruguaio e de toda a América do Sul é valorizar o próprio futebol brasileiro. É uma péssima mania a nossa não dar o devido valor à grandes símbolos ‘sudacos’ e sim exaltar as grandes figuras europeias como os detentores do verdadeiro e superior esporte. Não que o futebol europeu não tenha valor e não deva ser colocado no patamar que está, mas não se esquecer dos nossos próprios heróis é reafirmar nossa identidade e clamar nossa história, independente das deles. A América do Sul é por si só decacampeã do mundo. Afinal não é a gente em relação a eles, é a gente em relação a nós mesmos. Francescoli, uruguaio ídolo no River Plate, foi o tipo de jogador que dá nome a crianças e agita capitais. Relembrar um dos maiores jogadores da história de um dos maiores clubes do mundo é não se deixar perder memórias do nosso povo.
Enzo começou sua carreira profissional pelo modesto Montevideo Wanderers, após se frustrar com a forma como eram conduzidas as peneiras no Peñarol, seu time de coração. Ficou na equipe de 80 à 82 e fez sua história. Foi terceiro colocado no campeonato uruguaio em 80, melhor campanha desde o 1931, mas só em 82 conseguiu a classificação para a sonhada Libertadores. Acabou sendo também pelo clube montevideano que conseguiu sua primeira convocação para a Celeste seleção uruguaia.

Logo em 83, após fazer uma boa Copa América e ser campeão, o River Plate traz o uruguaio por 310 mil dólares, seria esse o início de uma longa história de amor. Na verdade, o começo de sua trajetória pela equipe Millionaria seria um tanto conturbada, já que o clube passava por uma época de transição da equipe vitoriosa de 75–81, que por conta de grandes investimentos do passado (como em 81, no campeão do mundo Kempes por 4 milhões de dólares) entrou em crise financeira. O River precisou vender vários medalhões e teve que investir em jogadores mais jovens, como o próprio Francescoli, e também em jogadores já consagrados e um pouco mais veteranos, como o ídolo e meia Alonso. No ano a equipe de Buenos Aires terminou em penúltimo e só não foi rebaixado por uma manobra no regulamento que evitou a queda também do San Lorenzo.
Seria logo nos próximos anos sua sorte começaria a mudar. Em 84, mesmo não tendo êxito em títulos foi uma temporada de significativa reconstrução para o River, que agora ficava na 4º colocação da liga e que sinalizava ter um grande craque em seu plantel, já que o apelidado pela sua elegância, Príncipe, foi artilheiro do campeonato com 24 gols. Seria em 85/86 que se sagraria finalmente campeão argentino, novamente artilheiro (25 gols), bem acompanhado por Claudio Morresi e aliado a uma sólida defesa e bom meio-campo, venceria 10 pontos na frente do Newell’s.

No mesmo ano de 86 o timaço de Alonso se sagrou campeão da Copa Libertadores, já sem Francescoli, que após uma discreta Copa do Mundo foi negociado com o Racing Club da França. Permaneceu por 8 anos na Europa, onde fez algumas boas temporadas, se tornou ídolo no Cagliari da Itália e também passou por clubes como Olympique de Marseille e Torino, mas que ficou marcado pelo título na equipe de Marselha, campeã francês de 89/90. Foi junto de Papin, um dos jogadores mais importantes no caminho para a taça e fez 11 gols em 28 jogos, fazendo até com que um tal de Zidane, torcedor do Olympique e futuro campeão do mundo, desse o nome do seu filho de Enzo, assim como o craque uruguaio. “Eu ia no estádio para vê-lo jogar. Quem dera eu conseguisse falar com ele. Eu tentava copiar tudo dele. Tudo, tudo que ele fazia eu queria fazer”, declarou o Zizu em entrevista à Fox Sports.
Após anos na Europa, mais uma vez campeão da Copa América em 87, uma vez vice para o Brasil em 89, mais uma Copa do Mundo disputada de forma discreta e um tempo aposentado da própria Seleção desde 91, voltaria a vestir a camisa da Celeste para uma última dança em 95. Seria numa campanha invicta, que depois de ver a Argentina empatar e passar o Uruguai como seleção mais vencedora da competição, que a Celeste de Francescoli seria campeã mais uma vez.O capitão fez dois gols, foi empatado com Fonseca o vice-artilheiro e premiado como melhor jogador de uma equipe muita equilibrada, que teve Otero como principal goleador (3 gols), foi nos pênaltis que La Celeste venceu o Brasil de Túlio Maravilha e Edmundo, que havia sido tetracampeão no ano anterior, e tornaria o Príncipe tricampeão da América, levando o Uruguai mais uma vez ao topo como a seleção mais campeã da competição.

Não foi só o retorno à Celeste que marcou os anos de 94 e 95 do atacante, que retornava para uma segunda passagem no River Plate. Em 94, num campeonato argentino diferente e dividido em duas partes (Apertura e Clausura), foi mais uma vez campeão e artilheiro no Clausura, fazendo 12 gols e vencendo dessa vez invicto, pela primeira vez na história do clube. Foi num duríssimo ano de 95, que mesmo com um medíocre campeonato nacional (décimo colocado no Clausura), o River chegaria a uma semifinal de Libertadores da América.
Na competição os Millionarios vinham de uma fase de grupos invicta, nas oitavas eliminaram a Universidad Católica de Barticiotto (campeão da Libertadores em 91 pelo Colo-Colo) e de Gorosito, campeão da América em 86 pelo próprio River, num duríssimo 4x3 agregado. Nas quartas-de-final eliminariam o forte Vélez, defensores do título, comandados pelo grande Carlos Bianchi (tetracampeão da Libertadores) e de Chilavert, um dos melhores goleiros do mundo. Seria nas semis que o esquadrão dos jovens Hernán Crespo, Ayala, Almeyda, Marcelo Gallardo e do camisa 9 Francescoli cairia. Em novamente um empate duro por 1x1, a equipe iria para a disputa de pênaltis, foi no brilhantismo do consagrado e folclórico goleiro Higuita que os argentinos sucumbiram. O goleiro que já tinha feito o importante gol de falta na vitória por 1x0 no primeiro jogo, defende um penal de Matías Almeyda, eliminando o River pelo Atlético Nacional de Medellín numa acirrada disputa de 8x7. Posteriormente o time colombiano perderia a final para o fortíssimo Grêmio de Jardel e Paulo Nunes por 4x2.

Mas seria em 96, dez anos após o título de 86, que a metade vermelha de Buenos Aires sorriria mais uma vez. Com a chegada do jovem lateral esquerdo Sorín e com a ascensão meteórica de outros garotos de uma geração premiada do clube, Francescoli e o treinador Ramon Díaz comandariam o River Plate de suas vidas. O River faz uma fase de grupos tranquila, com 4 vitórias e 2 empates, porém seria logo nas oitavas de final, contra o Sporting Cristal, que a vida dos argentinos começaria a complicar.
Um duro Sporting Cristal, que viria a ser finalista da Libertadores no ano seguinte, faz 2x1 num dia apagado para os Millionarios. A virada viria junto de um placar homérico, com um doblete de Crespo, um gol de Francescoli e um de Ortega e Cedrés, a jovem equipe faria uma histórica goleada por 5x1 no Monumental de Nuñez, que ficou marcado por um golaço de bicicleta do impetuoso camisa 11 argentino.

Nada igual a fase anterior, porém as quartas-de-final também não seriam nada fáceis. Num clássico nacional contra o San Lorenzo de Ruggeri, o River vence o primeiro jogo por 2x1, com o 7º gol de Hernán na competição para abrir o placar e Ortega aos 80 para desempatar após Óscar Ruggeri marcar para os Azulgranas. No jogo da volta os comandados de Díaz administraram bem o jogo e se classificaram após um 1x1 sem muita emoção.
Já na semifinal, não teriam jogo fácil e enfrentariam o bom time da La U de Marcelo Salas, que pela primeira vez na sua história havia chegado numa semifinal de Liberadores. Fora de casa, no jogo da ida, Francescoli confirmaria hierarquias e abriria o placar com seu 5º gol na competição, mas logo a Universidad de Chile reagiria com uma noite encantada de Salas, que logo daria a assistência para o gol de Valencia e aos 69 viraria o jogo, aos 79 o time de Francescoli responde e Sorín faz o gol de empate após uma passe de Crespo. O Monumental de Nuñez serviu mais uma vez como amuleto e num chute desviado de Almeyda, o time argentino se classificou por a vitória por 1x0 (3x2) num jogo muito difícil.
Mais uma vez numa final de Libertadores, pela segunda vez na sua história, La Banda Roja podia obter a Glória Eterna, e El Príncipe uruguaio poderia finalmente conquistar o continente agora por clube, seu maior sonho como jogador. Novamente contra o América de Cali, que foi a vítima dos galos argentinos em 86, o time financiado pelo Cartel de Cali vinha com tudo, atrás da saborosa vingança e de ser pela primeira vez na história campeão. Os diabos colombianos vencem o primeiro jogo por 1x0, mas é em Nuñez que eles conhecem o verdadeiro inferno.
No que dizem ser a maior recepção da torcida para um clube na história, era uma noite mágica em Buenos Aires. Foi numa festa absurda dos torcedores que papéis brancos invadiram o gramado e faziam o campo parecer um cenário de guerra. Os colombianos pareciam ter sentido a pressão da torcida e logo aos 6 minutos o artilheiro Crespo abriu o placar após um cruzamento de Ortega, empatando o agregado e levando toda torcida ao êxtase. Foi aos 59, que num cruzamento agora de Escudero, que Hernán faria de cabeça o gol do título do River. 10 anos depois, o River Plate do capitão Enzo Francescoli, com toda uma nova geração de craques seria dono da América.

Ídolos não nascem ídolos, ídolos são construídos. Enzo Francescoli aos 35 anos beijar a taça da Libertadores do clube que o deu tudo é uma declaração de amor de um jogador ao clube, de um jogador ao torcedor, que o tornou ídolo, assim é construída uma história de amor. “Um passeio melancólico, triste, verdadeiramente principesco”, o definiu o histórico narrador Víctor Hugo Morales. Mas com verdadeiro sangue real e nobreza, a majestade se tornou uma só com o povo. Por um momento o torcedor do River se sentiu príncipe, se sentiu rei por partilhar do deleite de ter a América em suas mãos com seu proclamado e eterno Príncipe de Nuñez. O amor mútuo é o maior título de um ídolo e de um torcedor. Como já cantou o compositor e apaixonado torcedor Ignácio Copani, “Eu quero ver você mais uma vez querido Enzo, pelo riso que até em sonho multiplico, para o canto e alegria dos meninos, com seu príncipe sulcando o universo. Eu quero ver você mais uma vez querido IMMENZO. Eu quero te ver mais uma vez, eu imploro.”.
“O que mais me chama a atenção é o dia de hoje. Me surpreende que ainda te sigam, a quantidade de meninos que tem seu nome, muitas coisas que nem acredito. É forte e é a coisa mais gostosa que levo embora”
-Enzo Francescoli