Francescoli, o Príncipe de Nuñez

Miguel Castelo Branco
9 min readJul 9, 2023

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Olhar para a história do futebol argentino, chileno, uruguaio e de toda a América do Sul é valorizar o próprio futebol brasileiro. É uma péssima mania a nossa não dar o devido valor à grandes símbolos ‘sudacos’ e sim exaltar as grandes figuras europeias como os detentores do verdadeiro e superior esporte. Não que o futebol europeu não tenha valor e não deva ser colocado no patamar que está, mas não se esquecer dos nossos próprios heróis é reafirmar nossa identidade e clamar nossa história, independente das deles. A América do Sul é por si só decacampeã do mundo. Afinal não é a gente em relação a eles, é a gente em relação a nós mesmos. Francescoli, uruguaio ídolo no River Plate, foi o tipo de jogador que dá nome a crianças e agita capitais. Relembrar um dos maiores jogadores da história de um dos maiores clubes do mundo é não se deixar perder memórias do nosso povo.

Enzo começou sua carreira profissional pelo modesto Montevideo Wanderers, após se frustrar com a forma como eram conduzidas as peneiras no Peñarol, seu time de coração. Ficou na equipe de 80 à 82 e fez sua história. Foi terceiro colocado no campeonato uruguaio em 80, melhor campanha desde o 1931, mas só em 82 conseguiu a classificação para a sonhada Libertadores. Acabou sendo também pelo clube montevideano que conseguiu sua primeira convocação para a Celeste seleção uruguaia.

Montevideo Wanderers de Francescoli

Logo em 83, após fazer uma boa Copa América e ser campeão, o River Plate traz o uruguaio por 310 mil dólares, seria esse o início de uma longa história de amor. Na verdade, o começo de sua trajetória pela equipe Millionaria seria um tanto conturbada, já que o clube passava por uma época de transição da equipe vitoriosa de 75–81, que por conta de grandes investimentos do passado (como em 81, no campeão do mundo Kempes por 4 milhões de dólares) entrou em crise financeira. O River precisou vender vários medalhões e teve que investir em jogadores mais jovens, como o próprio Francescoli, e também em jogadores já consagrados e um pouco mais veteranos, como o ídolo e meia Alonso. No ano a equipe de Buenos Aires terminou em penúltimo e só não foi rebaixado por uma manobra no regulamento que evitou a queda também do San Lorenzo.

Seria logo nos próximos anos sua sorte começaria a mudar. Em 84, mesmo não tendo êxito em títulos foi uma temporada de significativa reconstrução para o River, que agora ficava na 4º colocação da liga e que sinalizava ter um grande craque em seu plantel, já que o apelidado pela sua elegância, Príncipe, foi artilheiro do campeonato com 24 gols. Seria em 85/86 que se sagraria finalmente campeão argentino, novamente artilheiro (25 gols), bem acompanhado por Claudio Morresi e aliado a uma sólida defesa e bom meio-campo, venceria 10 pontos na frente do Newell’s.

Francescoli pelo River Plate nos anos 80

No mesmo ano de 86 o timaço de Alonso se sagrou campeão da Copa Libertadores, já sem Francescoli, que após uma discreta Copa do Mundo foi negociado com o Racing Club da França. Permaneceu por 8 anos na Europa, onde fez algumas boas temporadas, se tornou ídolo no Cagliari da Itália e também passou por clubes como Olympique de Marseille e Torino, mas que ficou marcado pelo título na equipe de Marselha, campeã francês de 89/90. Foi junto de Papin, um dos jogadores mais importantes no caminho para a taça e fez 11 gols em 28 jogos, fazendo até com que um tal de Zidane, torcedor do Olympique e futuro campeão do mundo, desse o nome do seu filho de Enzo, assim como o craque uruguaio. “Eu ia no estádio para vê-lo jogar. Quem dera eu conseguisse falar com ele. Eu tentava copiar tudo dele. Tudo, tudo que ele fazia eu queria fazer”, declarou o Zizu em entrevista à Fox Sports.

Após anos na Europa, mais uma vez campeão da Copa América em 87, uma vez vice para o Brasil em 89, mais uma Copa do Mundo disputada de forma discreta e um tempo aposentado da própria Seleção desde 91, voltaria a vestir a camisa da Celeste para uma última dança em 95. Seria numa campanha invicta, que depois de ver a Argentina empatar e passar o Uruguai como seleção mais vencedora da competição, que a Celeste de Francescoli seria campeã mais uma vez.O capitão fez dois gols, foi empatado com Fonseca o vice-artilheiro e premiado como melhor jogador de uma equipe muita equilibrada, que teve Otero como principal goleador (3 gols), foi nos pênaltis que La Celeste venceu o Brasil de Túlio Maravilha e Edmundo, que havia sido tetracampeão no ano anterior, e tornaria o Príncipe tricampeão da América, levando o Uruguai mais uma vez ao topo como a seleção mais campeã da competição.

Francescoli campeão da Copa América de 1995

Não foi só o retorno à Celeste que marcou os anos de 94 e 95 do atacante, que retornava para uma segunda passagem no River Plate. Em 94, num campeonato argentino diferente e dividido em duas partes (Apertura e Clausura), foi mais uma vez campeão e artilheiro no Clausura, fazendo 12 gols e vencendo dessa vez invicto, pela primeira vez na história do clube. Foi num duríssimo ano de 95, que mesmo com um medíocre campeonato nacional (décimo colocado no Clausura), o River chegaria a uma semifinal de Libertadores da América.

Na competição os Millionarios vinham de uma fase de grupos invicta, nas oitavas eliminaram a Universidad Católica de Barticiotto (campeão da Libertadores em 91 pelo Colo-Colo) e de Gorosito, campeão da América em 86 pelo próprio River, num duríssimo 4x3 agregado. Nas quartas-de-final eliminariam o forte Vélez, defensores do título, comandados pelo grande Carlos Bianchi (tetracampeão da Libertadores) e de Chilavert, um dos melhores goleiros do mundo. Seria nas semis que o esquadrão dos jovens Hernán Crespo, Ayala, Almeyda, Marcelo Gallardo e do camisa 9 Francescoli cairia. Em novamente um empate duro por 1x1, a equipe iria para a disputa de pênaltis, foi no brilhantismo do consagrado e folclórico goleiro Higuita que os argentinos sucumbiram. O goleiro que já tinha feito o importante gol de falta na vitória por 1x0 no primeiro jogo, defende um penal de Matías Almeyda, eliminando o River pelo Atlético Nacional de Medellín numa acirrada disputa de 8x7. Posteriormente o time colombiano perderia a final para o fortíssimo Grêmio de Jardel e Paulo Nunes por 4x2.

Higuita comemorando gol de falta contra o River pela semifinal da Libertadores de 95

Mas seria em 96, dez anos após o título de 86, que a metade vermelha de Buenos Aires sorriria mais uma vez. Com a chegada do jovem lateral esquerdo Sorín e com a ascensão meteórica de outros garotos de uma geração premiada do clube, Francescoli e o treinador Ramon Díaz comandariam o River Plate de suas vidas. O River faz uma fase de grupos tranquila, com 4 vitórias e 2 empates, porém seria logo nas oitavas de final, contra o Sporting Cristal, que a vida dos argentinos começaria a complicar.

Um duro Sporting Cristal, que viria a ser finalista da Libertadores no ano seguinte, faz 2x1 num dia apagado para os Millionarios. A virada viria junto de um placar homérico, com um doblete de Crespo, um gol de Francescoli e um de Ortega e Cedrés, a jovem equipe faria uma histórica goleada por 5x1 no Monumental de Nuñez, que ficou marcado por um golaço de bicicleta do impetuoso camisa 11 argentino.

Bicicleta de Crespo contra o Sporting Cristal

Nada igual a fase anterior, porém as quartas-de-final também não seriam nada fáceis. Num clássico nacional contra o San Lorenzo de Ruggeri, o River vence o primeiro jogo por 2x1, com o 7º gol de Hernán na competição para abrir o placar e Ortega aos 80 para desempatar após Óscar Ruggeri marcar para os Azulgranas. No jogo da volta os comandados de Díaz administraram bem o jogo e se classificaram após um 1x1 sem muita emoção.

Já na semifinal, não teriam jogo fácil e enfrentariam o bom time da La U de Marcelo Salas, que pela primeira vez na sua história havia chegado numa semifinal de Liberadores. Fora de casa, no jogo da ida, Francescoli confirmaria hierarquias e abriria o placar com seu 5º gol na competição, mas logo a Universidad de Chile reagiria com uma noite encantada de Salas, que logo daria a assistência para o gol de Valencia e aos 69 viraria o jogo, aos 79 o time de Francescoli responde e Sorín faz o gol de empate após uma passe de Crespo. O Monumental de Nuñez serviu mais uma vez como amuleto e num chute desviado de Almeyda, o time argentino se classificou por a vitória por 1x0 (3x2) num jogo muito difícil.

River Plate e Universidad Católica pela semifinal da Libertadores de 1996

Mais uma vez numa final de Libertadores, pela segunda vez na sua história, La Banda Roja podia obter a Glória Eterna, e El Príncipe uruguaio poderia finalmente conquistar o continente agora por clube, seu maior sonho como jogador. Novamente contra o América de Cali, que foi a vítima dos galos argentinos em 86, o time financiado pelo Cartel de Cali vinha com tudo, atrás da saborosa vingança e de ser pela primeira vez na história campeão. Os diabos colombianos vencem o primeiro jogo por 1x0, mas é em Nuñez que eles conhecem o verdadeiro inferno.

No que dizem ser a maior recepção da torcida para um clube na história, era uma noite mágica em Buenos Aires. Foi numa festa absurda dos torcedores que papéis brancos invadiram o gramado e faziam o campo parecer um cenário de guerra. Os colombianos pareciam ter sentido a pressão da torcida e logo aos 6 minutos o artilheiro Crespo abriu o placar após um cruzamento de Ortega, empatando o agregado e levando toda torcida ao êxtase. Foi aos 59, que num cruzamento agora de Escudero, que Hernán faria de cabeça o gol do título do River. 10 anos depois, o River Plate do capitão Enzo Francescoli, com toda uma nova geração de craques seria dono da América.

Francescoli campeão da Libertadores

Ídolos não nascem ídolos, ídolos são construídos. Enzo Francescoli aos 35 anos beijar a taça da Libertadores do clube que o deu tudo é uma declaração de amor de um jogador ao clube, de um jogador ao torcedor, que o tornou ídolo, assim é construída uma história de amor. “Um passeio melancólico, triste, verdadeiramente principesco”, o definiu o histórico narrador Víctor Hugo Morales. Mas com verdadeiro sangue real e nobreza, a majestade se tornou uma só com o povo. Por um momento o torcedor do River se sentiu príncipe, se sentiu rei por partilhar do deleite de ter a América em suas mãos com seu proclamado e eterno Príncipe de Nuñez. O amor mútuo é o maior título de um ídolo e de um torcedor. Como já cantou o compositor e apaixonado torcedor Ignácio Copani, “Eu quero ver você mais uma vez querido Enzo, pelo riso que até em sonho multiplico, para o canto e alegria dos meninos, com seu príncipe sulcando o universo. Eu quero ver você mais uma vez querido IMMENZO. Eu quero te ver mais uma vez, eu imploro.”.

“O que mais me chama a atenção é o dia de hoje. Me surpreende que ainda te sigam, a quantidade de meninos que tem seu nome, muitas coisas que nem acredito. É forte e é a coisa mais gostosa que levo embora”

-Enzo Francescoli

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Written by Miguel Castelo Branco

Brasileiro apaixonado por cultura, música, futebol e América do Sul.

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