O mar de Caymmi é bandido

Miguel Castelo Branco
3 min readSep 7, 2024

--

fotografia minha do mar de salvador, na bahia

Nascido e criado numa cidade litorânea, porém ao mesmo tempo morador de um bairro suburbano, enfeitado pela vida que só os momentos vividos questionavelmente longe do mar proporcionam, tive meu coração bifurcado pelo cenário das árvores, dos bem-te-vis, das bandolas, e pelo cenário do mar, da jangada, do coqueiro e da lua enamorando-se. Sempre olhei o mar com admiração, com amor, com paixão e vontade de me tornar um só com esse Deus, que fez tão pouco caso de mim. Como o mar pode fazer caso de alguém? Engolindo-me? Levando-me? Eu não sei ao certo até onde posso caminhar por ele e tornar o material, no metafísico. Dorival Caymmi constrói um personagem, um culto, ao redor do mar, para ele Mar, com M maiúsculo.

Quem vem pra beira da praia, meu bem
Não volta nunca mais

Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar, ai

Ele acredita nisso, e eu acredito nele. O mar pode não fazer tanto caso da gente, mas forçadamente entregamos algo à ele quando saímos e entramos. Entregamos o nosso amor, a nossa devoção, nossa paixão de fora do mar se transforma dentro do mar. Todo caminho andado, não importa a direção, dá no mar. Esse mar não existe só na ideia, na especulação, e sim como ser físico que vem e leva. A onda toma e traz, envolve nosso corpo, nos molha e carrega de memória a memória, de risada a risada, de paixão a paixão, o que há de mais humano, a quem teve a coragem de entrar na sua imensidão.

O mar é ladrão?

O ladrão rouba. O mar não só rouba, como também sequestra, acode e aflige. Não voltamos os mesmos Joãos, Brunos, Doriváis, Gabriéis e Miguéis, dele. E sim, sempre voltamos. Porque mesmo ele ceifando vidas, não deixa de entregar à Rosinha de Chica a dor e a saudades de perder alguém para o mar. Ele sempre nos devolve alguma coisa na perda de outra. Como o pescador, humano, e amante do mar como nós, que tanto viu, experenciou o mar acontecer, ainda sofre com o mar? A presunção dessa pergunta é a mesma de quem acha que pode catalogar a força da vida humana, de quem acredita poder controlar o amor. O bem do mar, carrega a gente para lá e para cá, nos entrega a vida de alguém em mãos, e nos ensina que não podemos nunca viver abraçados por Iemanjá com a vida sensível em mãos.

O assobio que levamos daqui até o mar, e o reflexo do que somos, é carregado pelo amor que temos pela terra que nos batiza, que nos deixa andar como quisermos, que nos carrega da memória que cultivamos para algum momento, entregar ao invencível, ao belo, ao feio, ao sensível e ao rude, à mais visceral das naturezas. É difícil articular o que está dentro com o que está fora da minha mente, então no fim das contas, entrego tudo ao mar.

pintura que foi presente do meu padrinho ao meu pai há mais de 20 anos

--

--

Miguel Castelo Branco
Miguel Castelo Branco

Written by Miguel Castelo Branco

Brasileiro apaixonado por cultura, música, futebol e América do Sul.

No responses yet