E acaba de chegar São Judas Tadeu

Miguel Castelo Branco
5 min readOct 28, 2024

--

Sobre Flamengo, sincretismo, fé, raça, amor e paixão

Sou dos que afirmam ter se tornado Flamengo pela influência dos que amo, seja meu pai, meu irmão ou meu tio. Não nego. Mas algo que também me rodeia é que o sujeito que é Flamengo, já o é mesmo que ainda não conheça ou não saiba. No fim das contas, decidi que nasci rubro-negro, independente do externo. É uma questão de espírito, alma e pele. Até o “torcedor de berço” me incomoda, me coloca a interrogação na cabeça. Sei que o ‘berço’ metafórico devia representar o nascimento, mas ao mesmo tempo não deixa de simbolizar o lugar onde nos foi posto por alguém igual a nós. Mas isso tudo é só um devaneio, e é da minha natureza não me conformar.

Acompanhado da boa e gelada cerveja, o Flamengo sintetiza em mim emoções que o mundo ordinário não pode me proporcionar. Me impressiona até como Lamartine Babo, americano de coração, conseguiu traduzir tão bem o matar, o maltrato e o arrebato que o rubro-negro nos provoca. É algo tão pujante assim aos olhos? Ou vai de encontro ao que toda torcida sente com seu referido clube? Não acho que assim seja, e me apego ao que está ao meu alcance para ver do que é capaz o clube enquanto força da natureza. Não é normal, não pode ser normal. A sensação que tenho é que circulo o tempo inteiro o mesmo tema, não consigo desenvolver nem dar qualquer justificativa do que há de tão místico de profundo nesse clube, é quase como que se fosse uma verdade inerente na minha vida de que há algo inexplicável. Então, no fim das contas, o que está ao meu alcance observar?

Nos botequins da vida, é natural sim, ver o vermelho e preto onde quer que seja: em bandeiras, santinhos e maracutaias. Anômalo é não o vê-lo. O ‘flamenguismo’ enquanto simulação da religião, para mim, se tornou palpável quando após a final da Libertadores de 19, me enxerguei incapaz de desviar os olhos do rubro-negro. E olhe, isso não é sequer uma metáfora, toda rua e prédio que eu via no caminho de casa, me mostravam uma referência do Clube de Regatas do Flamengo. Em meia hora de caminhada, incontáveis bandeiras que se tornavam manifestos de alegria me lembravam — como se fosse possível esquecer — do sonho que eu e mais quarenta milhões acabava de vivera. Na tentativa de explicar tudo o que empurra o meu coração para fora, me vejo desesperado a fim de entender o porquê de tudo de ruim ou de bom acontecer comigo, e claro, com o Flamengo. Espero que não te confunda, mas falo sim dos amargos da vida, não só do que me fere na regata. A questão é que não consigo o deixar de fora de tudo o que sinto. Percebo que falo de Flamengo para falar das coisas do mundo, e falo das coisas do mundo para falar de Flamengo. Portanto, assim como ele me sincretiza emoções, eu o sincretizo com a fé, que já me é tanto sincretizada. Todo abraço entre desconhecidos, que vem acompanhado de um “graças a Deus”, após o balançar das redes, é o que sintetiza o que tento dizer aqui. O gol do Flamengo é o desabafo sul-americano que carrega uma história sangrenta de muita luta e riqueza cultural, é das poucas maneiras de ser feliz coletivamente, já que para tanta gente, a vida é tão cinza quando não pintada de rubro-negro.

Assim como o samba, que é um processo dialético e complexo que envolve tudo que há de mais brasileiro no Brasil, assim é o Flamengo. Veste rubro-negro quem é de São Jorge e quem é de Ogum, assim como quem faz e produz samba. A natureza miscigenada, ensanguentada e quente de quem é sambista e de quem é flamenguista, é intrínseca uma à outra. Então não é de surpreender ninguém o cristão e umbandista de cordão bem fininho, trabalhado em metal, rogar a São Jorge do mesmo jeito de roga a Ogum. Da mesma forma, qualquer brasileiro, independente de qualquer trajeto social ou racial, pode, deve, e já foi Flamengo.

Meu tio Ronaldo, falecido esse ano, é um dos que digo, dentro da tese racional e humana de que temos o controle mencionado no início do texto, que me ‘ensinou’ a ser rubro-negro. Se o vi mil vezes, em novecentas ele dava um jeito de estampar o CRF, e assim o fez até o fim da vida. Enterrado com a bandeira do Flamengo e ao som do hino escrito por Lamartine, ele me fez pensar cada vez mais no que seriam as causas impossíveis que a história desse clube tanto faz a gente pensar.

Já fiquei de mal com Deus algumas vezes, nossa relação já passou por altos e baixos. O chamei tanto, e assim fui atendido, quando Gabriel fez os dois contra o River. O chamei ainda mais antes de me levar minha vó, assim foi com meu tio. Já calejado entendi que as causas impossíveis que tanto pedimos para serem atendidas só são atendidas porque não entendemos o porquê de acontecerem. O samba agonizar, mas não morrer, é característica fundamental do samba, ele só é o que é porque resistiu e porque nos conta como resistimos, assim é a nossa relação com Deus. Perder no futebol nos machuca porque na nossa cabeça imatura machuca a memória daquele que nos partilhou as dores e alegrias do seu time de coração, mas o que não entendemos é que as perdas também aproximam e intensificam, por algum motivo, a paixão do que se torna o nosso sangue e que constrói nossos berços. Afinal, a nossa trajetória costuma ser dura, mas são os bons momentos com quem amamos que fazem ela valer a pena.

Assim como é de tamanha presunção afirmar saber o porquê de torcermos para tal clube, é também presunçoso presumir que temos controle sobre a vida. As idas e amargos da vida estão aí para mostrar o que há de mais doce. Se não há morte, não há vida, não há memória, e não há renovação. Sem o maltrato, o arrebato, não há a cerveja quente na cabeça acompanhada do grito de gol. Logo, se por ventura, acaba de chegar São Judas Tadeu, agradeça sua vinda, não reclame da sua ausência.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Miguel Castelo Branco
Miguel Castelo Branco

Written by Miguel Castelo Branco

Brasileiro apaixonado por cultura, música, futebol e América do Sul.

No responses yet

Write a response